Estar pronto para todos os sacrifícios

Matéria publicada no Jornal Mundo Espírita :: outubro/2007

 

Todos que chegaram a um grande lugar foram por uma escada tortuosa. - Francis Bacon

 

Ainda há aqueles que imaginam que o trabalho levado a efeito por Allan Kardec não teve lutas e sofrimentos.

 

Quando vinha sendo construída a Codificação, Allan Kardec, cioso de suas incumbências, em certa ocasião, fez a seguinte indagação aos Espíritos Benfeitores, obtendo resposta do Espírito Verdade:

 

P. - Quais são as causas que me poderiam fazer fracassar? Seria a insuficiência das minhas aptidões?

 

R. - Não; mas a missão dos reformadores é cheia de escolhos e perigos; a tua é rude; previno-te, porque é ao mundo inteiro que se trata de agitar e de transformar. Não creias que te seja suficiente publicar um livro, dois livros, dez livros, e ficares tranqüilamente em tua casa; não, é preciso te mostrares no conflito; contra ti se açularão terríveis ódios, implacáveis inimigos tramarão a tua perda; estarás exposto à calúnia, à traição, mesmo daqueles que te parecerão mais dedicados; as tuas melhores instruções serão impugnadas e desnaturadas; sucumbirás mais de uma vez ao peso da fadiga; em uma palavra, é uma luta quase constante que terás de sustentar com o sacrifício do teu repouso, da tua tranqüilidade, da tua saúde e mesmo da tua vida, porque tu não viverás muito tempo. Pois bem. Mais de um recua quando, em lugar de uma vereda florida, não encontra sob seus passos senão espinhos, agudas pedras e serpentes. Para tais missões não basta a inteligência. É preciso antes de tudo, para agradar a Deus, humildade, modéstia, desinteresse, porque abatem os orgulhosos e os presunçosos. Para lutar contra os homens, é necessário coragem, perseverança e firmeza inquebrantáveis; é preciso, também, ter prudência e tato para conduzir as coisas a propósito e não comprometer-lhes o êxito por medidas ou palavras intempestivas; é preciso, enfim, devotamento, abnegação, e estar pronto para todos os sacrifícios.

 

Vês que a tua missão está subordinada a condições que dependem de ti.

 

Ele mesmo escreve, passado certo tempo, a respeito dessas orientações e esclarecimentos:

 

Escrevo esta nota no dia 1° de janeiro de 1867, dez anos e meio depois que esta comunicação me foi dada, e verifico que ela se realizou em todos os pontos, porque experimentei todas as vicissitudes que nela me foram anunciadas. Tenho sido alvo do ódio de implacáveis inimigos, da injúria, da calúnia, da inveja e do ciúme; têm sido publicados contra mim infames libelos; as minhas melhores instruções têm sido desnaturadas; tenho sido traído por aqueles em quem depositara confiança, e pago com a ingratidão por aqueles a quem tinha prestado serviços. A Sociedade de Paris tem sido um contínuo foco de intrigas, urdidas por aqueles que se diziam a meu favor, e que, mostrando-se amáveis em minha presença, me detratavam na ausência.

 

Em se tratando da Sociedade de Paris, em outro momento, ainda na biografia assinada por H. Sausse, donde retiramos o texto acima, encontramos também essas considerações de Kardec a respeito: Desde muito tempo alimentava o desejo de demitir-me das minhas funções: manifestei-o de modo muito explícito em diversas ocasiões, quer aqui, quer em particular a muitos dos meus colegas, e especialmente ao Sr. Ledoyen. Tê-lo-ia feito mais cedo, se não fora o temor de produzir uma perturbação na Sociedade. Retirando-me no meado do ano, poderiam acreditar em uma deserção, e era preciso não dar esse prazer aos nossos adversários. Desempenhei, portanto, a minha tarefa até ao fim; hoje, porém, que esses motivos cessaram, apresso-me em vos dar parte da minha resolução, para não embaraçar a escolha que fareis. É justo que cada um tenha a sua parte nos encargos e nas honras.

 

E arremata Sausse: Apressemo-nos a acrescentar que essa demissão não foi aceita e que Allan Kardec foi reeleito por unanimidade, menos um voto e uma cédula em branco. Diante desse testemunho de simpatia, ele se submeteu e se conservou em suas funções.

 

Na Revista Espírita de junho de 1862, quando do discurso de abertura do ano social pelo quinto aniversário da Sociedade, Allan Kardec escreveu:

 

A Sociedade, vós vos lembrais, senhores, teve suas vicissitudes; tinha em seu seio elementos de dissolução, provenientes da época em que recrutava muito facilmente, e sua existência foi mesmo um instante comprometida. Naquele momento, coloquei em dúvida sua utilidade real, não como simples reunião, mas como sociedade constituída. Fatigado com esses desacordos, estava resolvido a me retirar; esperava que, uma vez livre dos entraves semeados sobre o meu caminho, nela trabalharia tanto melhor na grande obra empreendida.

 

Disso fui dissuadido por numerosas comunicações espontâneas, que me foram dadas de diferentes lados.

 

(...) Desde então, dois anos se escoaram, e, como o vedes, a Sociedade felizmente saiu dessa crise passageira, das quais todas as peripécias me foram assinaladas, e das quais um dos resultados foi nos dar uma lição de experiência, que aproveitamos, e que provocou as medidas das quais não temos senão que nos aplaudir. A Sociedade, desembaraçada dos cuidados inerentes ao seu estado anterior, pôde prosseguir seus estudos sem entraves; seus progressos também foram rápidos, e cresceu a olhos vistos...

 

Comenta ainda Henri Sausse: (...) Cartas anônimas, insultos, traições, difamações sistemáticas, nada foi poupado a esse intrépido lutador, a essa alma grande e varonil que penetrou integralmente na imortalidade.

 

Não bastassem problemas dessa ordem, Henri relata os seguintes fatos na vida do Prof. Rivail, ou seja, Allan Kardec:

 

O sócio do Sr. Rivail tinha a paixão do jogo; arruinou o sobrinho, perdendo grossas somas em Spa e em Aix-la-Chapelle. O Sr. Rivail requereu a liquidação do Instituto, de cuja partilha couberam 45.000 francos a cada um deles. Essa soma foi colocada pelo Sr. e Sra. Rival em casa de um dos seus amigos íntimos, negociante, que fez maus negócios e cuja falência nada deixou aos credores.

 

Longe de desanimar com esse duplo revés, o Sr. e Sra. Rivail lançaram-se corajosamente ao trabalho. Ele encontrou e pôde encarregar-se da contabilidade de três casas, que lhe produziam cerca de 7.000 francos por ano; e, terminado o seu dia,esse trabalhador infatigável escrevia à noite, ao serão, gramáticas, aritméticas, livros para estudos pedagógicos superiores; traduzia obras inglesas e alemãs e preparava todos os cursos de Levy-Alvarès, freqüentados por discípulos de ambos os sexos do faubourg Saint-Germain. Organizou também em sua casa, à rua de Sèvres, cursos gratuitos de química, física, astronomia e anatomia comparada, de 1835 a 1840, e que eram muito freqüentados.

 

Diz Stephen Dolley Jr: O homem que quer fazer dá um jeito; aquele que não quer dá desculpas.

 

H. Sausse fala da enfibratura moral de Kardec: O Mestre possuía uma vontade de ferro, um poder de combatividade extraordinários; era um trabalhador infatigável; de pé, em qualquer estação, desde às 4 horas e meia, respondia a tudo, às polêmicas veementes dirigidas contra o Espiritismo, contra ele próprio, às numerosas correspondências que lhe eram dirigidas; atendia à direção da Revista Espírita e da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, à organização do Espiritismo e ao preparo das suas obras.

 

Ele não podia parar, já que não conseguiram detê-lo.

 

Um barco está seguro num porto, mas os barcos não são construídos para isso, disse John A. Shaedd.

 

Mas, mesmo com todos os percalços e surpresas desagradáveis em sua vida, Allan Kardec, esse intrépido lutador, essa alma grande e varonil, sem titubear, sem esmorecer, continuou, e legou para a humanidade um imenso tesouro, capaz de enriquecer todas as almas com a esperança, com a fé, com o sentimento de amor ao próximo e a Deus acima de todas as coisas.'


© Federação Espírita do Paraná - 20/11/2014