O obsedado gadareno

Os Evangelistas Marcos (5:1-20) e Mateus (8:28-34) denominam os habitantes de gerasenos. Lucas (8:26-39) refere-se a um  local chamado Gergesa, antiga cidade à beira do lago de Genesaré.

O nome é talvez artificial, consideram alguns, e seria devido a Orígenes.

Amélia Rodrigues, Espírito, narra o fato  referindo-se a Gergesa ou Gerasa, cidade da Transjordânia, cujos domínios não vinham até o lado de Genesaré, distando dali cerca de dois quilômetros, tendo sido fundada por Alexandre Magno, segundo uns, ou Antíoco IV Epífanes.

De qualquer forma, dentre aqueles que estudam os Evangelhos, há os que consideram Gergesa como a cidade que preferiu os suínos em detrimento de Jesus.

O fato é narrado após o asserenar da tempestade no lago. Jesus fez aproar a barca e se encaminhou em direção de Gerasa, pertencente à Decápole, isto é, ao complexo de dez cidades que estava sob o domínio romano.

Ele programara aquela visita, há algum tempo, acalentando a possibilidade de ali levar a Boa Nova.

Era o mês de Kislev (dezembro/janeiro), portador de tempestades. Amanhecia, e a noite se despedia, beijada pela madrugada, quando eles chegaram: Jesus e os doze.

Mal haviam galgado o barranco, Jesus à frente, quando uma figura medonha veio-lhes ao encontro.

Era um sítio ermo, onde se cavavam sepulturas e ele parecia ter surgido do meio delas.

Estava nu e agitava em ambos os pulsos e nos pés pedaços de correntes de ferro partidas, pendentes de aros de algemas.

Deveria ter sido preso e se libertado, graças às fúrias que o atormentavam.

Trazia a cabeleira desgrenhada, a barba maltratada e todo ele eram equimoses e hematomas, que denunciavam o horror em que vivia.

Era o fantasma de um homem que parecera ter sido despertado pela Luz que viera da Galileia.

De um salto, erguera-se de um túmulo vazio, dominado pelos Espíritos que o maltratavam.
Esse homem, bem jovem entregara-se aos prazeres de toda ordem, dilapidando o patrimônio familiar.

De tal sorte cometera loucuras e desvarios que seus pais sucumbiram à vergonha e horror. Por isso, detestavam-nos os parentes.

Abandonara o lar, a família, a parentela e quando as sombras o subjugaram, passou a andar pela cidade, como um louco. Gritava, dizia injúrias, ria e gesticulava, tornando-se ameaça para as gentes, que passaram a temê-lo.

Julgado pela mente popular como filho ingrato, que fizera sucumbirem seus pais pelos seus desvarios, também era motivo de vergonha aos parentes.

Tentaram manietá-lo. No entanto, os muitos Espíritos que dele abusavam, concederam-lhe tal força que lhe permitiu romper as cordas, depois as correntes.

Por fim, ele foi expulso da cidade e passou a viver entre as cavernas esburacadas da rocha, entre as criptas sepulcrais.

Morrera para os seus. Justo que vivesse entre as sombras das sepulturas.
Vagara anteriormente pelos bosques próximos, disputando restos de alimentos aos animais.

Desvairado, olhar alucinado, a face em constante esgar, emitindo sons roucos de animal acuado, passava os dias em combate incessante com as fúrias que o possuíam.

Era um joguete na mão da impiedade, presa que se fizera das trevas. Jogavam-no contra as rochas, agrediam-no e, na tentativa de safar-se, ele mesmo mais se machucava, rolando entre as pedras e arranhando-se, buscando libertar-se do jugo feroz.

Avistando aquelas silhuetas que vinham da direção do mar, ele ergueu os braços ameaçadores e correu como se desejasse expulsá-los dos domínios que considerava seus.

O som gutural que não se sabia definir fosse de um ser humano ou de um animal ferido, acuado, fez tremessem os Apóstolos.

Mas a Luz, que programara aquele encontro, o recebe, indagando:

Quem és?
– Como se  já não O soubesse.

O Senhor dos Espíritos fala com Legião, os muitos que se serviam daquele homem.

Retira-te deste homem!
– Ordena o Mestre.

Os Espíritos lhe sentem o poder e então suplicam: Para onde iremos?

Alimentando-se do prazer das sevícias que impunham àquele seu prisioneiro, se perguntam o que farão, onde habitarão, eis que o endemoninhado lhes constituía lar e pasto diário.

Enquanto se trava o diálogo da libertação, ouvem-se grunhidos e um resfolegar rouquejante, misturados a vozes humanas. Logo, uma manada de porcos desenhou sua silhueta escura, no fundo claro do céu e, correndo, desabaladamente, caiu do alto do rochedo.

O atormentado sacudiu-se em estertores, rolou de pedra em pedra e se estatelou semiconsciente.

Jesus e os Apóstolos oram. O homem que agasalhava Legião, como que despertando de longo sono, recobra seus sentidos, olha, chora e agradece.

Lembra-se vagamente de dias distantes, família e aconchego. Não sabe bem o que lhe aconteceu mas, pelo estado deplorável do corpo nu, o gosto de sangue na boca, aquilata das agruras que passou.

Está livre! Calmo, pede ao Mestre que o deixe segui-lO.

Volta para tua casa.
– Determina Aquele – e conta quão grandes coisas te fez Deus.

Antes que o infeliz atingisse a cidade, os guardadores de porcos o fizeram. Com cores fortes, narraram ter visto a calma do louco, falando a um homem poderoso, a quem culpavam pelo prejuízo financeiro.

O que expulsava os demônios, diziam aos proprietários dos porcos, arruinaria a todos.


E o povo, liderado pelos donos dos porcos, foi ao encontro do Mestre e dos Seus. Com pedras nas mãos, O expulsaram.

Não te queremos ouvir! Volta para de onde vieste!


Jesus desceu a ladeira, retornou à barca e com os doze se foi.

O homem liberto, feliz, contava a todos o que lhe sucedera. Readquirira a razão, o domínio de si.

Contudo, ninguém desejava ouvi-lo e lhe disseram que fosse ter com Aquele que lhes havia trazido grande prejuízo, desde que para ele valia tanto.

Vai-te. Esquece-te de nós.


Uma pedra o atingiu e o sangue tingiu o chão.

Maldita sejas, Gerasa, que expulsas os filhos e desprezas os Enviados de Deus!


Ele ainda vagou pelas terras da Decápole, narrando o que lhe fizera o Galileu. Depois, foi para o outro lado do mar e juntou-se à multidão para segui-lO e ouvi-lO pelos vales, cidades, lagos e mares.

Reconhecido, passou a auxiliar aos sofredores, sofredor que também fora.
Amado, amou, trabalhando pela implantação do Reino de Deus.

Na sua curta estada naquelas plagas, o Poder do Amor transformou um endemoninhado em propagador do Seu Reino.

01.FRANCO, Divaldo Pereira. O obsidiado geraseno. In:___. As primícias do reino. Pelo Espírito Amélia Rodrigues. Rio de Janeiro: Sabedoria, 1967.
02.ROHDEN, Huberto. Os possessos de Gerasa. In:___. Jesus Nazareno. 6. ed. São Paulo: União Cultural. v. I, pt. 2, cap. 60.
03.SALGADO, Plínio. Os gadarenos. In:___. Vida de Jesus. 21. ed. São Paulo: Voz do Oeste, 1978. pt. 2, cap. 52.
04.VAN DEN BORN, A . Gádara. In:___. Dicionário enciclopédico da bíblia. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1985.
05.______. Gérasa. Op. cit.
06.______. Gerasenos. Op. cit.
07.______. Gérgesa. Op. cit.
Em 18.2.2016

© Federação Espírita do Paraná - 20/11/2014