O notável raban

Gamaliel pertencia à seita dos fariseus, que tinha nas mãos, à época primeira da Boa Nova, praticamente todo o alto ensino religioso. Era dos homens mais notáveis da seita farisaica.

Representava, como o grande Hilel, a tendência liberal. Não desprezava ninguém. Afável e bom, não condenava os crentes que falavam grego, nem voltava ostensivamente a cabeça, quando, nas ruas, cruzava com mulheres ditas pagãs.

Retribuía as saudações dos estrangeiros, o que, face ao formalismo e orgulho farisaico, era tido como um sinal de insigne generosidade.

Sua ortodoxia era inatacável, tanto que lhe foi criado um termo para o fim expresso de testemunhá-lo. Assim, enquanto os doutores da Lei, antes dele, eram chamados rab, isto é, mestre, ou ainda rabi, meu mestre, a ele davam a denominação de raban, nosso mestre.

A Mixna, isto é, a tradição dos Antigos, por ocasião da sua morte, recolherá o férvido elogio que lhe foi feito: Desde que Gamaliel desapareceu, já não existe a honra da Lei; a pureza e a devoção morreram com ele. 3

Raban Gamaliel tinha uma alma profundamente religiosa e uma consciência perfeitamente reta.

É ele que insiste com Isaac, pai de Saulo (o Apóstolo) para deixá-lo vir de uma vez a Jerusalém, com o fim de, a breve tempo, substituí-lo no Sinédrio,  pois que pretendia se aposentar.

Quando das primeiras perseguições aos homens do Caminho, em Jerusalém, atendendo ao convite de Simão Pedro visita a Casa do Caminho, para melhor conhecer as suas atividades.

Ali, emociona-se ao encontrar antigo amigo de Cesaréia, por nome Samônio, a quem conhecera no fausto e na opulência. O velho amigo está doente, abandonado pela família, e enaltece o trabalho dos seguidores de Jesus, observações que penetram fundo o coração do justo Gamaliel.

O sábio raban felicita os companheiros de Jesus pela obra que realizavam na cidade, tecendo algumas considerações a respeito de cuidados que Pedro deveria tomar, com o intuito de aparar os golpes da violência que, cedo ou tarde, haveriam de chegar.

Presenteado com os apontamentos de Mateus, Gamaliel se pôs a ler imediatamente. Diria a Saulo, ao se desencadear a fúria do discípulo sobre os seguidores de Jesus: Pressinto grandes transformações em toda parte. 4

Pede-lhe, em seguida, a libertação de Pedro, João e Filipe. Não alcançou êxito quanto a Estêvão, a respeito do qual Saulo insistiu na pena de morte por apedrejamento.

Frise-se que a única voz que se levantou, no seio do Sinédrio, a favor daqueles homens, foi a de Gamaliel, que  Atos dos Apóstolos (5:38-39) assim registrou: Aconselho-vos a que não vos metais com estes homens, e que os deixeis; porque, se esta ideia ou esta obra vem dos homens, ela mesma se desfará; mas, se vem de Deus, não a podereis desfazer; assim não correis o risco de fazer oposição ao próprio Deus.

Após o episódio de Damasco, Saulo tornará a procurar o raban, agora com outra disposição. Gamaliel se retirara para um oásis de propriedade de seu irmão Ezequias, onde lia e meditava interminavelmente sobre os textos de Mateus.

Abandonara as práticas religiosas do Judaísmo, e a família o tratava com condescendência, considerando-o um pobre velho meio caduco, mas muito amado.

O diagnóstico médico afirmava que padecia de singular astenia orgânica, que lhe consumia as últimas forças vitais.

Envolvido numa grande paz interior, Gamaliel, realmente alquebrado, recebeu o antigo discípulo com alegria. Seria o último encontro de ambos, naquela encarnação. As mãos trêmulas e secas, são beijadas pelo moço de Tarso.

Os cabelos pareciam mais brancos, a pele estava sulcada de rugas, na face de uma palidez indefinível.

Com lágrimas de emoção nos olhos vivos e serenos, o velho mestre ouve a narrativa de Saulo sobre os acontecimentos de Damasco.  Aquela prova enchia-o de profundo consolo. Não havia aceitado, em vão, aquele Cristo sábio e amoroso, incompreendido dos homens. 5

Lúcido, Gamaliel orienta os passos iniciais de Saulo nos novos caminhos. Antes de retornar a Jerusalém ou a Tarso, cabia-lhe consolidar seus propósitos na meditação e no silêncio, enquanto as suas mãos trabalhassem no tear.

Intercedendo junto ao irmão, conseguiu que ele fosse aceito como um de seus empregados, no deserto de Dan, junto aos refugiados Áquila e Prisca.

O velho mestre, que lhe transmitira a sabedoria milenar da velha lei, impulsionava-o agora na direção da nova lei.1

Tendo feito, de próprio punho, cópias do Evangelho de Mateus, completo, Gamaliel confia os rolos a Saulo, pois reconhece que seu fim se aproxima e os escritos que lhe haviam iluminado o espírito, deveriam servir a outros muitos.

Confiando-lhe, ademais, as anotações que lhe tinham sido presenteadas por Simão, diz-lhe que, futuramente, poderiam lhe servir de credencial, junto a Pedro, em Jerusalém, quando ali se apresentasse, podendo fazê-lo em seu nome.

Seria injusto dizer que não trabalhou pelo Cristo: serviu-o fielmente de maneira decisiva junto ao espírito ardente de Paulo. 2

Se não o declarou publicamente, suas diligências no Sinédrio salvaram a comunidade nascente. Orientou Paulo na moderação e, depois, aconselhou-o ao período de retiro para amadurecimento das ideias. Foi quem o introduziu, de forma sutil, ao exame da Boa Nova, após sua estrada de Damasco:

Vejo-te, no futuro, dedicado a Jesus, com o mesmo zelo ardente com que te conheci consagrado a Moisés! Se o mestre te chamou ao serviço é porque confia na tua compreensão de servo fiel. Quando o esforço das mãos te haja granjeado a liberdade para escolheres o novo caminho a seguir, Deus há de abençoar-te o coração, para difundires a luz do Evangelho entre os homens, até ao último dia de vida aqui na Terra. 5

01.MIRANDA, Hermínio C. O homem e a obra. In:___. As marcas do Cristo. Rio[de Janeiro]: FEB, 1984. v. 1, cap. 2, itens As simpatias de Gamaliel e Reencontro com Gamaliel.
02.______. Os amigos. Op. cit. cap. 4, item Gamaliel.
03.ROPS, Daniel. O inimigo de Cristo. In:___. São Paulo, conquistador de Cristo. 2. ed. Porto: Livraria Tavares Martins, 1960. cap. 1, item Um menino judeu numa cidade grega e O aluno do "Raban".
04.XAVIER, Francisco Cândido. As primeiras perseguições. In:___. Paulo e Estevão. Pelo Espírito Emmanuel. Rio de Janeiro: FEB, 2002. pt. 1, cap. VII.
05.______. O tecelão. Op. cit. pt. 2, cap. II.
06.http://www3.sympatico.ca/pmorasse/page88.htm
07.http://apostolado.sites.uol.com.br/grao.htm
Em 18.2.2016

© Federação Espírita do Paraná - 20/11/2014