Levi

Matéria publicada no Jornal Mundo Espírita - julho/2003

 

Àquela época as rendas do Império Romano eram arrecadadas por um sistema de taxação direta sobre pessoas (capitatio humana), o que devia equivaler ao atual Imposto Pessoa Física, ISS e sobre propriedades (capitatio terrena), correspondendo aos atuais IPTU e Imposto Rural. Havia ainda a taxação indireta (postorium) sobre a exploração do subsolo, salinas, imposto de consumo e tarifas alfandegárias, o que também encontramos similares na atualidade (ICMS e outros).

 

"...A arrecadação das rendas do Estado efetivava-se em todo o Império por arrematadores que, em hasta pública, ofereciam maior lance, firmando-se, em seguida, no fórum, junto ao censor, o contrato respectivo." (4)

 

Muitos judeus, com seu especial temperamento para negócios, comércio e finanças, se entregavam a esse mister, pelo que eram olhados, pelos fariseus, saduceus, zelotes e toda a população, com desprezo.

 

Não importava o cargo que ocupassem. Fossem altos funcionários das alfândegas, contadores, modestos amanuenses ou simples escreventes, todos eram simplesmente chamados de "publicanos" e olhados de soslaio. Odiados.

 

Se enriqueciam no trabalho, se respeitavam a Torá, se freqüentavam a Sinagoga, se pagavam o dízimo exigido, nada disso importava. Eram detestados e, no Templo de Jerusalém, quase sempre se postavam em lugar mais afastado, até mesmo para evitar escandalizar a parentela, a vizinhança e os conterrâneos.

 

A alma dos publicanos era uma alma dolorosa, solitária. Entre esses, havia um tal de Levi, filho de Alfeu, que desempenhava na alfândega de Cafarnaum, as funções de escrevente. Com maestria manejava o kalam, caniço talhado para escrever, anotando, em colunas, o nome das mercadorias, a percentagem tributária, a moeda para o pagamento.

 

Nas horas de seu descanso, ele se entregava a amargas meditações. Ansiava pela vinda do Messias. Não seria afinal Ele, o Messias, Aquele que deveria vir para fazer sorrir a felicidade entre as montanhas de Israel?

 

Ele se sentia como "um leproso", um ser à margem da sociedade.

 

Certa manhã de sábado, em que estava no seu local de trabalho, levantou os olhos e os viu. Não conseguia se recordar porque é que fora ali, naquele dia e naquela hora, pois não era o seu habitual, nesse dia e nesse horário.

 

Era um grupo de pescadores, entre os quais, ele reconheceu João e Tiago, dos quais, mais de uma vez, cobrara impostos. À frente deles, caminhava um estranho de cabelos cor de mel, barba à moda nazarena e uma túnica de alvura brilhante. Destacava-se pela majestade do porte. Parecia um homem letrado, culto.

 

Sente Levi inusitadas emoções. Tem ímpetos de seguir com o grupo, de acompanhá-los. No turbilhão de pensamentos que o dominou, ele se deixou ficar ali, parado, atônito.

 

Compareceu à sinagoga, naquela tarde e O viu. Ele leu os textos e os interpretou. Na acústica da alma, Levi parecia reconhecer aquela voz. Novamente, a emoção lhe tomou de assalto os sentimentos. Aquele homem falava de coisas tão velhas e já sabidas, ao mesmo tempo de coisas novas e surpreendentes. Não era tudo o que sempre aguardara para sua própria vida?

 

Quando o Rabi saiu da sinagoga e se dirigiu à casa da sogra de Pedro, Levi acompanhou-O, de longe.

 

Ouviu os comentários das curas da sogra de Pedro, do endemoninhado, mas não ousou se aproximar. Desejava, mas temia. Ele era um renegado, uma infeliz ovelha de Israel. Contudo, almejava aproximar-se e dizer: "Senhor, eu não sou digno..."

 

A voz lhe morria na garganta.

 

Nas noites seguintes, o sono lhe foi atormentador. Bastava fechar os olhos, para ver aquele olhar que se cruzara com o seu, na manhã daquele sábado, à porta da alfândega. Se abria os olhos, podia ver, na escuridão do quarto, aquele olhar...

 

Vencido pelo cansaço, adormecia por algum tempo, para despertar, álgido de suor, com a lembrança de que estava acompanhando o Mestre, por uma longa estrada de sol. Embaixo do braço, o rolo de papiro de assentamentos da alfândega. Entretanto, nele não havia anotações sobre dracmas, sestércios, peças de ouro, mas somente escritos, alguns versículos, algo que ele não conseguia distinguir.

 

Finalmente, enquanto trabalhava, às primeiras horas do dia, na repartição aduaneira, tudo aconteceu. Sua tarefa era mecânica. Seu espírito pairava distante.

 

Então, ergueu os olhos e focalizou o retângulo da porta. Um estremecimento percorreu todo seu corpo. Esfregou os olhos. Estaria sendo vítima de uma alucinação pelas tantas horas não dormidas?

 

"Emoldurada pelos batentes, destacando-se no fundo azul do lago e do céu, ergue-se diante dele, irradiante de bondade, a figura do Mestre." (4)

 

- Levi, filho de Alfeu, segue-me!

 

Ele se levantou. Não havia dúvidas em seu coração. Seguiu-O.

 

Há felicidade no ar. Tudo parece cantar alegrias. Ele convida o Rabi para um banquete em seu lar. Preparou a mesa, dispondo peixes assados e fritos, maçãs, romãs, azeite e mel de qualidades preciosas, vindas de Méron, Corazim, Hébron.

 

Sobre a toalha de linho branco, abundância de baixelas, taças e pratos. À porta de entrada, dispôs serviçais com vasilhames de água pura para as abluções devidas.

 

O povo se aglomera na praia, em expectativa. É um grande acontecimento em Cafarnaum.

 

Quando vê a barca de Simão se aproximando da praia, e a figura de Jesus com sua túnica brilhante, os cabelos emoldurando-lhe a face, Levi tem vontade de gritar.

 

Seu peito quase estoura de felicidade. Ele avança, curva-se e com seus braços, as lágrimas represadas, abraça o Divino Amigo.

 

- Alegra-te, Mateus, fala-lhe o Pastor, hoje a felicidade adentra pelo teu lar.

 

O banquete foi festivo, ao som de pífanos, flautas, pandeiros e delicados sinos. Ardem as piras fumegantes, em volta da mesa farta, no cair da tarde.

 

Os fariseus que passam e observam o banquete na varanda da rica casa, murmuram. Jesus serve-se do momento, para a lição dos sãos que não necessitam de médico, mas sim os doentes.

 

"Jesus faz a refeição do entardecer com os convidados do seu convocado, publicanos como ele, da mesma alfândega, que se interessam pelo reino que Ele traz. Esclarece uns e orienta outros, explica-lhes qual a estratégia a desenvolver, para que se implante o reino especial, e toda uma conversação afetuosa se estabeleceu." (1)

 

Mateus Levi ou Levi Mateus mudou de atividade, encontrando a sua real vocação : "...anotar almas para o banquete do reino de Deus." (1)

 

A Mateus é atribuído o primeiro Evangelho, escrito originariamente em aramaico, embora a versão que se conheça seja a da tradução grega, que se acredita, tenha sido feita pelo próprio autor. Dos seus apontamentos primeiros, se serviram os cristãos primitivos para a disseminação das alvíssaras da Boa Nova, dentre eles, Simão Pedro, Barnabé, Paulo, o convertido de Damasco.

 

Na Casa do Caminho, em Jerusalém, Estevão, o primeiro mártir do Cristianismo, através deles conhece os ditos e os feitos do Mestre de Nazaré.

 

Segundo a tradição, Mateus Levi teria sido martirizado na Etiópia.

 

Seu nome deriva do grego Maththaios ou Matthaios, proveniente do aramaico Mattai, forma abreviada do hebraico Mattanyah, que significa "dom de Yavé".


Bibliografia:
1.FRANCO, Divaldo Pereira. O ministério de Mateus Levi. In:___. Até o fim dos tempos. Pelo espírito Amélia Rodrigues. Salvador: LEAL, 2000.
2.RENAN, Ernest. Os discípulos de Jesus. In:___. Vida de Jesus. São Paulo: Martin Claret, 1995. cap. 9.
3.ROHDEN, Huberto. Jesus Nazareno. Vocação e banquete de Levi. In:___. Jesus nazareno. 6. ed. São Paulo: União Cultural. v.1, cap. 39.
4.SALGADO, Plínio. Levi, filho de Alfeu. In:___. Vida de Jesus. 21. ed. São Paulo: Voz do Oeste, 1978. pt. 2, cap. XIX.
​5.ENCICLOPÉDIA Mirador Internacional. Rio de Janeiro: Britannica, 1986. v. 3, verbete Apóstolo - 9.9

© Federação Espírita do Paraná - 20/11/2014